domingo, 20 de outubro de 2013

Confessionário



Confesso que é difícil comprar uma dúzia de ovos num país em que crianças catam pedaços de cabeça de peixe jogados nas sarjetas para comer.

Confesso que com a grana que chega aqui, só penso que seja para a melhoria da alimentação e das instalações das crianças. Tenho dificuldade em ter uma cama enquanto elas dividem o colchão e muita dificuldade de comer minha barra de cereal pela manhã enquanto a maioria delas nunca deve ter comido uma dessas em toda a vidinha.

Confesso que fico mal ao saber que minha saúde não suporta a água que elas bebem, a comida que elas comem e fico mal ao saber que meu organismo não reage como o deles, assim não podendo estar com elas em tudo e tudo mesmo, partilhando. Elas percebem nossos privilégios de brancos.

Depois de ver como vivem, confesso que passei a ter ainda mais raiva do sistema de bancos e do fundo monetário internacional, do "capetalismo" desenfreado dos países de primeiro mundo, das propagandas ilusórias de televisão, das igrejas da prosperidade e das tradicionais que gastam milhares com assentos almofadados e púlpitos banhados à ouro. 

Confesso que achei que tinha visto a miséria nas minhas andanças pelo Brasil e América Latina. Aqui a miséria é crônica, onde a gente olha e não vê solução.

Confesso: Considero que a ONU, UNICEF e o escambal de grandes agências por aí estão pouco se lixando diante do que realmente podem fazer.

Os homens brancos, principalmente os com intenções religiosas e ligados ao petróleo, foram e são ainda a maior praga que a Nigéria e certamente que toda a África já viu. Confesso que percebo assim.

Confesso que tenho muita dificuldade com os pratos típicos daqui. Eu que me considerava um devorador no Brasil engolindo tudo o que vinha pela frente, corro e passo longe do espetinho de caramujo, dos dogs and cats e duma massinha apimentada. Encaro bodes, pássaros todos, antílopes... mas tem umas coisas complicadas! Confesso que prefiro comer 3 quilos de dog que um caramujo no espeto e que o ditado "o que os olhos não vêem..." aqui seria melhor aplicado se fosse "o que os olhos não vêem o estômago não sente."

No Brasil, todo mundo ama a África. Ama as fotos da pobreza na África. Amam as músicas da África, amam as crianças da África. Mas confesso que fico irritado quando amam a ponto de só conseguirem curtir fotos e histórias. Arregaçar as manguinhas diante do que for possível à cada um e dar um gás é um lindo gesto de amor! Melhor que 7 bilhões de curtidas no facebook.

Confesso que me percebi um viciado em futebol. Na minha primeira chance com uma TV aqui na Nigéria, liguei no canal de esportes. Vi tudo quanto era jogo. Até o campeonato mundial sub-17. Iraque X Suécia, Irã X Argentina... matou um pouco a minha seca.

As crianças são o que segura a gente em pé! Confesso que por causa delas, a gente vai até na lua!

Eu já pensei em dar umas pernadas aqui, pancada de tudo que é lado, arranjar muita briga e confusão, contra religiosos exploradores, contra políticos safados, arranjar mais confusão que já consegui em toda a minha vida. Mas confesso que estou sendo tomado por uma paz que excede todo o entendimento à começar do meu. 

O dia mais difícil foi quando fomos visitar uma mãe vítima da loucura de um profetinha religioso e que amaldiçoou os seus filhos condenando-os à muita dor e o momento mais difícil foi quando abri a porta de madrugada para o Bobózinho que chorava sentado à minha porta. Confesso que fui tomado de amor por aqueles olhinhos me olhando.

O dia mais feliz foi na praia, onde os meninos brincavam livres de paredes. Parei para olhar como a vida é linda! Os momentos mais especiais foi ver os meninos correndo na chuva, a Vitorinha rindo com a poça d'água e o Godwin virando a madrugada tentando consertar o gerador com pedacinhos de pau e um canivete. Confesso que sonhei com o futuro de cada um deles.

Confesso que vai ser difícil deixá-los. No dia da minha partida, vou sair escondido, de madrugada. E confesso que não tem mais jeito. Posso não estar com eles, mas eles sempre estarão em mim. Por isso, comprei uma briga que vai até o fim da minha vida.

Tenho tido muitos sonhos. Dormindo e acordado. Os que tenho dormindo falam comigo menos que os que tenho acordado. Meu maior sonho acordado é de um novo espaço para eles e para outros que virão. Confesso que isso me enche de esperança!

Confesso que aqui o que mais me brilha os olhos é uma latinha de batata Pringles.

Confesso que apesar do ronco, o Léo faz uma falta danada no quesito "desespero produtivo", com ele a velocidade das reformas aqui aumenta.

O meu maior susto aqui não foram os ataques terroristas no norte, nem o espeto de caramujo, nem o policial que invadiu o carro sentando do meu lado, mas uma barata que beliscou minha orelha. 

Apesar do caos de sempre, está tudo bem. Sigo firme e forte. Confesso que poucas vezes na vida me senti tão firme e forte. Sei que disso vem de muito cuidado que recebo dos de longe.

Confesso a saudade de muitos!

Quando eu ganhar na loteria, vou investir meus esforços numa máquina de teletransporte. Almoço em casa, beijo os que amo aí e venho para cá cuidar dos nossos pequeninos.

Escrevendo é que me sinto perto. Eu confesso.

Confessarei sempre nessas linhas.

Um beijão em cada um.


Gito

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