terça-feira, 8 de outubro de 2013

Personagens da vida real

Noticias da Nigéria by Gito:  eu só mudaria o título: direitos animais, ainda.

Temos profissionais aqui, esperando apenas oportunidades de vida.

Godswin é mecânico. Ele fica responsável pelo gerador de energia. Anda pela estradinha de terra para buscar petróleo que nunca acha ainda que aqui seja a terra do petróleo. Quando o gerador quebrou, passou a noite com uma lanterna e uns gravetos, uma faca e uma corda, tentando arrumá-lo. David e Paul são auxiliares. Eles formam um excelente time. Consertam motores com gravetos e ficam até mais tarde no serviço. Eles poderiam ser contratados por qualquer empresa. Falam ibibio e inglês. Mas falta oportunidade. E digo com sinceridade que eles só têm a nós para que possam ter chances.

Aparentemente, só nos, "gente de fora", que temos os colocado "para dentro", incluindo-os. Conversando. Preocupados com eles. Alimentando-os bem.

Regina canta feito passarinho. Lava sua roupa com um balde no chão, cantando com muita graça. É ritmada, afinadíssima e entende de tons, segunda voz. É ainda uma menina, de sorriso lindo e voz suave. Canta melhor do que a maioria das pessoas que eu conheço. Canta tão bem quanto muitas meninas que no Brasil, encantam em festivais. Ela poderia cantar em qualquer palco do mundo sem passar vergonha e ainda encantar o público com sua doçura e seu sorriso. Mas falta oportunidade. Eu queria ver vocês a vendo cantar. Eu queria que ela não tivesse apenas a cantoria de passarinho, mas as asas. Queremos vê-la voar. Livre. Escolher o seu caminho.

Cristovam é baterista. Ele toca bateria com pedaços de gravetos arrancado de árvores. Sabe tudo de bateria. Tem tempo de música, toca com o prato de ataque no contratempo, batuca em tudo o tempo todo e para melhorar, tem em si o ritmo africano, carrega na alma o repique do samba que herdamos de seu povo. Ele é baterista para qualquer banda de música popular, o que ele faz com gravetos num pedaço de bateria velha, faria com baquetas numa bateria decente e nos deixaria perplexos com a sua habilidade. Mas falta oportunidade. O menino de sorriso tímido que já é quase homem, que diz com vergonha: tio, eu preciso de uma sacola para guardar minhas roupas. Eu gostaria de ver o Cristovam batucar sua vida com a mesma maestria com o qual batuca tudo. Mas não tem baquetas. Não tem chances. Só tem a nós. Para pedir sacola. Para dividir dor. Para sorrir sem medo de apenas sorrir.

Itoroh é cuidadora. Fica responsável pela criançada do orfanato, ainda que ela seja ainda só um pouco jovem. É pau para toda obra, anda o orfanato todo, sempre pronta e prestativa. Um gás só. Acompanhá-la requer treinamento e preparo físico. Fala dois dialetos, inglês e arranha alguns outros. Lava roupa com o balde no chão, faz o almoço, troca menino, pendura a roupa, carrega coisas, o tempo todo de lá para cá, além de prestar um serviço de conselheira, educadora por vezes, assistente social por vezes e gerenciar toda a correria com muitas crianças. Itoroh, com seu gás e sua habilidade, pode trabalhar em qualquer lugar do mundo. Mas falta oportunidade. De repente some o seu chinelo e cadê? Vem Itoroh com ele branquinho, limpo, acabou de lavar. E sem dizer nada, pega pratos para lavar, varre a poeira do canto, ajuda a carregar malas. Ela é daquelas que faz a coisa acontecer. Mas me confessou que está cansada. Eu queria vê-la estudar.

E que mais direi?

Me faltará tempo para falar de tantos outros meninos e meninas, jovenzinhos de vida sofrida. Muitos que com pouca idade já passaram por tormentos que eu jamais passei nem de perto.

Queremos enchê-los de esperança e dar um futuro para eles.

Não queremos arrancá-los de sua cultura e nem cortar suas raízes, mas queremos que eles tenham futuro fora da miséria.

Sabemos que a situação deles no orfanato, por mais difícil que seja, é ainda muito melhor do que da maioria das crianças pobres dessa África sem fim.
E eles estão agora numa situação muito menos complicada do que estavam, principalmente aqueles que foram resgatados dos estigmas da bruxificação.
Queremos dar oportunidades a eles.

Cada um deles merece oportunidade. Queremos investir em suas vidas. 

Precisamos treiná-los. Proporcionar para nossa molecada cursos em suas áreas. Aprimorar o que já sabem e capacitá-los ainda mais.

Queremos um espaço para eles. Um orfanato com cara de casa e família. Um lugar com energia elétrica ou pelo menos onde o gerador não seja um caco. Onde eles não precisem guardar água da chuva para o banho. E que tenham, no mínimo, três alimentações diárias. Já temos conseguido muita coisa, graças a Deus! E estamos lutando para melhorar! Sempre!

Para os pequenos, queremos entrar com os processos de adoção ou de restituição familiar. E campanhas fortes na luta contra a estigmatização, inclusive nas igrejas que defendem a bandeira da bruxificação.

Um espaço que seja com cara de casa ao invés de orfanato que lembra campo de concentração, uma escola ao invés de um ajuntamento de crianças uniformizadas aprendendo a ler em lousas improvisadas com professores sem paciência, uma escola profissionalizante para os maiores, que amanhã, amanhã mesmo, já serão adultos.

Precisamos de um lugar. Este que estamos não é nosso. Não é deles. É do descaso. O dono desse lugar é o Bispo Descaso. Nós pedimos licença e entramos com a cara e a coragem para tentar dar aos meninos, pelo menos, direitos animais.

Sim, direitos animais: Comer, ter um teto para proteger sua prole das tempestades e água limpa.

Não temos lutado ainda por direitos humanos. Estamos na base dos direitos animais que lhes eram negados. Só tinham uma refeição/dia. Conosco passaram a ter três. Muitos dormiam no chão enquanto outros em colchões podres. Estamos trocando os colchões.

Direitos animais: comida, água e teto. Todo animal busca isso para sua cria.

Agora queremos dar a eles, direitos humanos.

Construir um futuro. Dar-lhes vida em abundância. Ver formaturas e chorar no dia de sua adoção. Escola técnica! Um espaço para realizar o que aprendem!

Precisamos de recursos. Muitos. Pois não temos quase nada perto do que precisam!

Mas estamos regados dessa boa utopia. Cheios de muita esperança. Esperança é o que não falta!

Queremos mudar o mundo, a começar pelo desses nossos pequenos, que estão mudando a nossa vida.

Precisamos de parceiros. Gente comprometida com o bem, cheios de boa vontade sem ganhar nada em troca, a não ser muita correria.

Precisamos de investimento. Gente que acredite no futuro. Que doe mesmo sem slogan no portão do orfanato, que prefere investir em gente que na bolsa de valores. E que se contente em apenas vê-los bem e não façam isso por barganha qualquer.

Precisamos acreditar que eles não são personagens de uma história do outro lado do oceano. Mas são parte de nossa própria história, quando com eles, convivemos num mundo de injustiças.

Precisamos lembrar que enquanto dormimos, eles apenas passam a noite.

Precisamos lembrar que enquanto nos esbaldamos com nosso almoço, os maiores dividem o quase nada com os menores.

Que enquanto você curte no facebook da vida virtual. Eles existem de verdade!

Eles estão nesse planeta enquanto você está. São gente do seu tempo. E junto deles, muitos outros. 

E nós, que temos o privilégio de beliscar a geladeira sempre que quisermos e deitar numa cama limpa, o que faremos?

O consideraremos personagens de uma triste história do outro lado do oceano, ou parte da nossa história, nossos irmãos, nossos próximos?

Essa resposta precisa ser urgente. Para ontem.


Gito

Akwa Ibom
Nigéria

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